somos como pastelarias centenárias que
fecharam: obsoletos e inúteis ninguém
sentirá a nossa falta daqui a uns seis anos
tirando um velho ou outro que recordará
o bolo russo o pastel de feijão o chá
de tília nas tardes de chuva quando ainda
se podia fumar dentro dos espaços fechados
quando ainda se podia fumar
ponto final parágrafo
mas está tudo bem
em nome da saúde pública que se fodam
os poetas e as pastelarias antigas

insalubridade

dois pratos desirmanados
somente o que sobrou de
umas partilhas uma herança
um caixote inteiro de loiça
mas apenas os pratos dois
pratos o resto tudo cacos
cerâmica quebrada memórias
de uma velha morta menos
nesse espaço do coração
onde os mortos resistem
através dos pratos que sobram

meu cabrão de merda

“estou quase casada” dizia a mulherzinha
sem saber enfim apreciar o afecto que lhe
era dirigido pelo homenzinho que por
sua vez não queria saber se era quase casada
ou solteira
ou o caralho a quatro
é assim o afecto é assim o amor no
capitalismo em estágio final
como dizia há muitos anos um amigo
quem recebe o amor é quem tem o capital
e quem tem o capital faz o que bem
entender no mundo contemporâneo
afinal todos uns celibatários involuntários
meu amigo
mas que se foram safando ao longo da vida
que souberam investir o capital em quem
valorizou no mercado ainda que tantas
vezes a bancarrota nos tivesse deixado
tão próximos de saltar de um oitavo
andar em direcção ao pavimento
e às cabeças e aos corpos dos transeuntes

pólis

o poema começa falando dos juros da habitação
mas no público alguém pede para dizer a beleza
porque a vida tem que ser muito bela na poesia
então o poema passa a dizer a flor, o céu, a água
por umas duas ou três estrofes adiante e alguém
no público fala que a beleza não é nada daquilo
muito furioso pede antes para falar do estranho
então o poema pega o desvio e muda o discurso
por umas duas, três estrofes, aquilo se repetindo
outro no público pede-lhe para falar do político
porque a poesia tem de ser política efetivamente
e então o poema volta a dizer juros da habitação
mas o coro do público o acusa de charlatanismo
diz que o poema nunca dá o que o povo precisa
atiram-lhe tomates, cuspidelas, beatas de cigarro
você não pertence a isto aqui, volta lá à sua vida
e o poema põe o casaco, dobra a quarta esquina
e vai pedir o empréstimo para pagar a prestação

gasolina

destruir o rosto do homem
europeu caucasiano hétero
normativo ajoelhado no
chão à nossa frente como
se fosse uma estátua
calcária calado estóico
silencioso com as unhas
ferindo a parte interna das
mãos apertadas reparação
histórica meu caro por
todos os milhões de peixes
que desde o século xvi
têm de engolir caules
de girassóis venenosos

água de côco

dizer: escrevi a minha opus nos cafés
das galerias em desreparo da cidade litorânea,
não tive como registar, factualmente, o
salitre nas narinas ou os velhos tipicamente
conterrâneos a tresandar a cerveja e a vinho
barato que adormeciam ao relento junto dos
/
como se fossem
cães esquálidos. na segurança do privilégio
socioeconómico de classe média-baixa, falei
da miséria humana, fiz chorar doutores e
também padeiros e caixas de supermercado:
a dor no centro escuro da vida, um tesouro
iluminando a minha existência pelos cafés
gentrificados da cidade litorânea; ter
dinheiro para a patisserie da esquina, para
o restaurante vegano de onde todos saem
com bafo a alho a kombucha a aveia a
morte. por favor, ajudem-me a pagar o
próximo computador pessoal.

imperial

hão-de se acabar os facsimiles
nos livros de poesia
a seu tempo acabarão também os
livros de poesia por não haver
como publicar facsimiles nos
livros de poesia e não teremos
mais o que ler nas quintas-
-feiras à tarde no meio das
vozes do eco dos carros das
motas contra o plástico das
esplanadas a resistir à chuva ao
vento ao sol no meio do ruído
violento dos filhos dos outros
e também uso nenhum que se possa
dar a cadernos a canetas a lápis
os poemas serão somente fotografias
tiradas aos monitores e ninguém
lerá mais poemas na velocidade
esfomeada da vida tecnológica
e os livros de poesia nas estantes
ou debaixo dos pés das mesas bambas
para que não balancem

dentífrico

o acto de escrever, no fim de tudo,
nada mais do que esta poeira finíssima
sobre a exaustão automatizada do
quotidiano. nenhum grito que quebre
a monotonia dos dias, toda a libido
gasta nos antidepressivos, caminhando
com demasiadas dores nos rins e na
barriga das pernas, tentando só sobeviver
aos anos que nos restam deste século.
afinal, nenhum exorcismo, porque nada de
que nos queixarmos; os tdahs, os autismos
mais ou menos incapacitantes com que nos
absolvermos da responsabilidade de viver.
nenhum professor velho de literatura
portuguesa renascentista a oferecer
uma bofetada bem assente na bochecha como
panaceia para a depressão do mundo. e talvez
devesse ter aceitado a chapada, teria ainda,
apesar de tudo, o sangue borbulhando,
intumescendo o baixo-ventre, poderia ao
menos escrever sem cansaço sobre as fodas
grotescas em casas de banho públicas,
sobre as pernas animalescas da mulher ao
lado de quem me recolho para dormir todas
as noites, fazer metáforas telúricas, com
cheiro a meita e a húmus, de novo o poeta
ridículo que olhavam com pena sempre
que lhes voltava as costas, a criança
sem dentes a levar merda de coelho à
boca, mas que de vez em quando dizia umas
coisas maravilhosas, tão a transbordar de
poesis, deus do céu!, ao criar essas imagens
de mansões abandonadas com um candelabro
gigantesco no foyer e hóspedes iguais ao
que hoje somos: sombras fumando nos cantos
recônditos das casas, sem conseguir
aprender como lidar com a metamorfose do
corpo, como responder ao que nos roubaram,
tão violentamente, os antidepressivos e a
vida. e pelo canto dos olhos só uma poeira
finíssima pousada sobre o acto de escrever,
nenhum homem rude que se disponha a dar-nos
a cura para todos os males, sob a forma
de uma mão rija, aberta, aplicada severamente
sobre as carnes do rosto, ferindo a pele.

bellavista: ex-libris

vem um papa de rosto pesado
obeso na memória colectiva
apontando com o dedo perfumado
para dentro da pobreza da miséria
humanas rodeado de incenso como
num filme alemão da década de 40
do século vinte expressionista
impressionista capitalista enfim
e limpa-se a cidade dos parasitas
varrem-se pessoas para dentro
de armazéns de barracões nos subúrbios
onde não chegam o ouro e as jóias
os incensos e as mirras
nenhum homem-deus é sepultado por
detrás de uma pedra gigantesca
só se enterram os vivos atrás de portas
metálicas para que durmam para que não
incomodem sísifos substituindo-se uns
aos outros empurrando uma pedra
gigantesca ladeira acima para que um tal
de josé de arimateia que tinha um túmulo
nos arrabaldes possa selar a porta e
sepultar o deus-homem enquanto o papa
sorri tanto quanto pode e diz palavras
que os fiéis entendem como acolhimento
como um abraço universal mas aos ouvidos
dos que foram enterrados vivos nos
armazéns nos barracões de arrumos
municipais nenhuma dessas palavras chega
são só pão para pombos nos parques e
nas praças sangue na ponta dos dedos
vidro nos caixotes do lixo pedras de
sal nos rins pequenas mulheres de lot
voltando-se para trás enquanto o
deus de misericórdia destrói sodoma
e gomorra

necrose

lavar os dentes todos os dias
cortar as unhas rente
sangrar um pouco do sabugo
enxaguar o rosto
pôr a roupa na máquina às sete
da manhã antes de sair à pressa
para o trabalho com a fralda da
camisa de fora das calças de
tirilene cinzentas
como os dias como o tabaco
a apodrecer os pulmões todos os
dias uma miséria de um intervalo
para almoço dentro do qual
aproveitar para fugir em direcção
às traseiras do prédio becos
sujos de tinta de grafitti de
preservativos usados de beatas de
cigarros de meias de rede sem uso
de putas de sem-abrigo dormindo
cobertos com caixas de cartão abertas
o lixo da humanidade varrido para
debaixo dos tapetes da cidade
um brilho no meio do cinza acabado
do expediente da subsistência
conformada dos dias repetidos iguais
afinal também iguais repetidos para
a escória talvez um único dia
“patrão, tem um que me arranje, se faz
favor?” e tem um tem sempre um ou dois
as unhas cortadas rente quase tocando
nas unhas longas como os dias
sujas negras uma linha de noite onde se
encerram definitivamente os dedos do
outro tem sempre um tome lá o resto
guarde o resto como se fosse um tesouro
cancerígeno como todos os tesouros
um motivo de doença de morte sei lá
um abraço de qualquer coisa cinética
no vagar dos dias de dentes lavados